segunda-feira, 30 de junho de 2008

Pele

Quem se expõe
no sudário
o corpo nú

Sem medo
do vermelho
sangue, mulher

Quem sorri,
frágil,
rara percepção

Mãos e pés
recorrentes
afeto, dor

Quem reinventa
seu andar
notando os demais

Não implora,
grita,
com seu fazer

Não pede,
surge
poder que brota


Quem
tem fé,
Fernanda

deixa marcas
onde passa:
_Evoé!

Pra Fernanda Manéa, corajosa mulher, artista plástica cuja obra assusta e faz pensar...
é preciso olhar de longe e bem de perto. Mas ainda há mais, muito mais a descobrir, quando a conheces. Em exposição e no blog: http://femanea.blogspot.com
A foto é um detalhe de uma das minhas rosas.

Passo-preto

a letra no papel
a letra torta
o papel

a tinta
a tinta na caneta
preta

o bico
o bico da pena
ponta

a pluma
paina que paira
voa

a ave
dor que magoa
canta

'Assum preto véve sorto
mas não pode avoá
mil veiz a sina
de uma gaiola
desde que o céu, ai
pudesse oiá'

a letra
mais triste
real

crueldade
atroz
banal

'Furaram os óio
do assum-preto
pra ele assim, ai
canta mió'

seguimos
soltos
cantando

Gonzagão, o Véio Lua, se foi e nos deixou esta canção.
É a obra mais linda, triste e cruel que eu conheço.
Brasileira, remete à exploração de negros e índios, que perdura...
A foto é do amigo artista Alexandre Vilas Boas, para quem enviei a arte-postal. Mais em: http://blackbirdproject.blogspot.com/

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Intento


Se me dedico
a desenhar, desenho
Se me ponho a entoar,

canto


tomo dos instrumentos
faço minhas armas
lido com medos, processos,
segredos


se estruturo em barro,
carvão ou giz
me preservo, me tranco
me abro ou observo


já pintei com lágrimas
saliva, sangue
já esfreguei terra, folhas, sumos
já lavei aquarelas
afim de esquecer


entornei cafés
engoli fumaça
cortei lascas, farpas, pontas
entortei metais


Doí, sarei,
Surtei, perdi,
fui muito longe sem sequer sair
na madrugada, o assombro


na cantiga, doçura
de ninar criança
o protesto rouco
dores e lamentos

corais, botecos
Kirie, blues


"Este baião,
eu inventei pra ninar
o meu amor num berço feito
de raios de luar,
baião, oi, de ninar..."


A voz sai sem esforço
quando a canção pede
no tom conforme
o outro tom


e quando os pássaros
vêm dançar aqui
aí eu bebo o céu
em sua inteireza


Aspiro ao vôo
imito jeitos
transtorno os outros
intenciono ser


Culpa, culpa,
mea culpa,
de sonhar acordada
de gargalhar alto
de chorar à toa
de fazer sozinha
de tentar adivinhar
de ir aonde o vento me levar

agora


A música "Baião de ninar", aprendi com Gisele Cruz, assim como o "Kyrie", herança das missas cantadas em latim. A foto foi feita numa perambulação por São Paulo, em companhia do Cauê. Parece a lateral da matriz da minha cidade...

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Religare


"Om mane padme hum
Om mane padme hum
Om mane padme hum
Om mane padme hum"

Toda ilusão,

Maia,
leva à dor
Toda dor
leva ao sofrimento

O Caminho,
Tao,
inicia-se
em quem se põe
a caminhar

Toda entidade,

Nagual,
ronda entre
o doente e o peregrino

O som,

OM,
origina todas as coisas
soprando-lhes vida: alento

A fé,

Deus,
desfaz os nós,
remove montanhas

O Pai,

Tupana,
olha seus filhos
e se entristece

A Mãe,

Oxum,
lava seus filhos
e agradece

Todos os

Encantados
dançam
no igarapé

Jesuína se ri,

divertida,
Assim seja.

O mantra que inicia este texto é um poderoso veículo de transformação.
O Nagual faz parte da tradição indígena norte-americana, citado nos livros de Carlos Castañeda.
Tupana corresponde a Tupã, entre os Saterê-Mawé.
Jesuína é uma personagem brasileira da tradição oral.

sábado, 21 de junho de 2008

Giz

O exercício da escrita
no caderno virtual
diário de adolescente
de quarenta e tantos
(envelhescente, então)

vai somando os amigos,
dividindo angústias,
subtraindo o que foi.
Multiplica o que poderá

Como na folha de papel
que embrulhava o pão
copiava as tabuadas
com lápis no. 2

Como na primeira iniciação:
escrever com caneta tinteiro
exercício que retomo,
pra lembrar onde aprendi

No terceiro ano da escola,
com 8 anos então,
treinava escrever com tinta
cada pausa era um borrão

Depois vieram as Bic
expressão de liberdade
ainda borravam um pouco
e vazavam no estojo

Mas a lembrança remota
a mais doce, proustiana,
caixa grande de giz de cera
cera de abelha, Albion

O estojo de madeira
com tampa que deslizava
o rótulo colorido,
as letras pretas, 'modernas'

E quando abria a caixa
enfileirados e lindos
meus brinquedos preferidos
o perfume de mel que tinham

A cor era bem vibrante
(descobri que cor cheirava!)
Então comia com os olhos
meu estojo de giz de cera

Os desenhos eram iguais
aos de qualquer criança no mundo:
sol, casa, árvore,
água, gente, caminho

Pra escola se ia à pé
contando as pedras do chão
cachorros acompanhando
sacola com cheiro de pão

A velha professora
hoje sou eu e olho
a criança, a adolescente,
que não querem ir embora


A foto é de 1981 e foi o amigo Ivaldo quem tirou, na faculdade.
"Envelhescente" é uma expressão do Mário Prata, no livro Diário de um Magro.
Marcel Proust escreveu Em busca do tempo perdido.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Ficção

Escorre sangue da mão do poeta
A tinta secou na mão do artista
Amargas são as palavras
Não há outras, todavia

Andar desencontrado
Olho de raio de sol
Cegueira por um instante

Um sóbrio, outro embriagado

Falam de tudo e nada
nada sobra do que dizem
O que não é dito se troca
rapidez, desenho e letra


O sangue pelo carvão
Abraço que não se dá
Cadernos, papéis trocados
Silêncio na escuridão


O mundo precisa dos poetas e dos artistas.
Alguém tem que sonhar...

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Nankim

Tinta do polvo
pintada de ouro
paciência oriental

Tinta preta
da impressão
no metal

Tinta do jornal
impressa
nas mãos

Tinta spray
mal disfarçada
nas unhas

Tinta que a madeira
recebe, bebe
e devolve: xilo

Tinta que une:
escutar, observar
executar, refazer

Ofício pesado,
fardo diário,
gira a roda:
refazer

Tinta, matéria
de vida e de morte
veículo de mutação

Como no inseto
casulo, casca,
cápsula, carapaça

Tinta, linguagem
refaz nosso mundo,
nos livra de enlouquecer.

Há professores que nos ensinam mais do que suas disciplinas,
mestres que fazem da vida a matéria de suas aulas.
Vivem com a gente a decepção e a perda
e também nossas descobertas e alegrias.
A todos os que se encaixam nesta descrição,
em especial aos arte-educadores, em geral grandes artistas...

terça-feira, 17 de junho de 2008

Herança


Dia 13 de junho foi dia de Santo Antoninho.
Meu vô Antonio, se estivesse vivo, faria aniversário.
Teria festa na vila. Com flor de papel crepom, bandeirinha e fita.
Mastro de eucalipto pros santos, bombinha e fósforo
de cor.
Foguetório... paçoca que ele socava no pilão.
Fogueira grande, que os tios armavam no meio do quintal.
Ia ter quadrilha no terreiro, com o disco do Mário Zan.
A mineirada toda já teria chegado, uma semana antes,
pra preparar as 'quitanda'.
O cheiro dos doces, milho, no ar.
Mãe amarrando pamonha.
Vó de lenço na cabeça, sempre às voltas com o fogão de lenha.
Arroz-doce com canela, curau, doce de abóbora.
Irmãs, primas e primos.
Uai e trem, em toda conversa.
" _ Isso é do tempo que Rio Pardo era corguinho..."

diria meu avô, se me visse agora.

Bênção, vô Antonio!
Pro Cauê, que viveu um tiquinho dessa herança e já acende as próprias fogueiras.
Pra todos os Antonios, até os pequenos e de olhos azuis...

domingo, 15 de junho de 2008

Muito barulho por nada

Nosso alimento
escrito
pintado
no muro
parede
papel
tela
lona

forma a teia
estica o fio
traz pra perto
afasta
corta

o alimentar-se
sem saliva
com palavras
sem som
e imagens
sem tinta
instiga
intriga
intimida

traz alegria
paranóia
susto
pressa
calma

traz a paz do trabalho realizado
a sensação de algo por fazer
inconcluso
inacabado
inoperante
só terminado
quando retro-alimentado

Alimentar-se de luz?
"_Filha, disse-me Deus, eu só como palavras..."
eu as descomo, arranjo, reordeno,
(brinco de Verbo fazer-se carne)
podem ser doces, atraentes,
fel, bile e sangue

Ao fundo,
a Morte,
espia
divertida
quem se afoga

num copo com água...

O processo criativo é um tema recorrente.
Às vezes colorido, outras, dolorido.
Em meio virtual fica ainda mais interessante...
Muito barulho por nada é uma peça de Shakespeare.
A frase citada entre aspas é de um poema de Adélia Prado,
no livro Oráculos de Maio.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Rotina

Continuo...
Adorando Adélia
Escolhendo meias
Esquecendo as chaves
Usando vermelho
Parando no verde!!!
Saindo de noite
Preferindo chita
Fazendo doce
Deixando pra depois
Carregando livros
Chamando os amigos
Andando sozinha
Sonhando ousar
Sendo parte do time
Tomando umas
Pensando demais
Fazendo devagar
Curtindo cantar
Ouvindo gente
Garimpando histórias
Pondo a mão na terra
Abraçando tudo
Mudando com a lua
Falando demais
Desenhando passarinho
Molhando o cabelo
Regando o jardim
Procurando desesperadamente
Um tiquinho de sol a cada dia...


Este cantinho não é o meu quintal.
Mas era um deserto e foi virando um jardim.
Fruto de trabalho, estação após estação.

Gosto de saber que ele existe e que me espera.
Reabastecer, silenciar, lidar com a terra.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Nanã

A superfície mutável do lago,
cinza-chumbo na chuva, quase sólido,
verde claro ao meio-dia,
alaranjado na tarde,
reflete luzes à noite

E não importa
se o caos impera ao redor
carros, buzinas,
namorados, hip-hop
pipoqueiro e hot-dog

Crianças em meio
aos pit-bulls encoleirados
moças de roupa justa,
homens que correm
(atrás de que, meu Deus?)

O lago impávido, observa
com a placidez de Nanã
Pulam peixes prata,
Tartarugas emergem

Alvas garças, mergulhões,
patos, marrecos, biguás,
ninhal improvisado nas árvores
da ilha, como convém

O convívio com o lago
na praça onde imperam
árvores que me sabem,
que me viram brincar,

tirar retrato, carregar cenário,
brigar e fazer as pazes,
alimentar menino,
passear cachorro...
tudo vem à tona

Na superfície do lago
a história de meus pais,
meus avós, recém-chegados
de Minas, a trabalhar
Na algazarra das maritacas,
a alegria da filharada...

E então me sinto como pedra
que rola, alisa, modela seu viver
e sonha voar,
sem quase sair do lugar

Essa foto, que eu adoro, foi tirada pela Cíntia Nagatomo e apelidada "Céu de Munch".
A grade quebrada já foi restaurada.
Os céus alaranjados voltaram nas tardes de junho.
Venham ver...

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Menino


Segue ligeiro o trem bão,
ferro em brasa, recordação
apito que lembra a casa
colina, cerca, canção

Tiziu, coleiro, sanhaço
frutinha boa no mato
carrapicho, carrapato
botina ou de pé descalço

Riacho, córgo, cascata
menino embrenha na mata
perde caminho, se acha
linha, anzol, minhoca, lata

Adormece no capim
sonha, quase um serafim
bala, maria-mole,
coquinho e amendoim

Acorda, sente a fisgada,
peixe grande na linhada
puxa meio atrapalhado,
o dia ganho, por fim

Mãe vai ralhar, decerto
pai vai ficar contente
o peixe vai pra panela
com farinha, pirão quente

_Caba não, mundão!
Esse poema, quase cantiga, foi feito pro Bré, mineirim da Zona da Mata e grande percussionista.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Yaguarê


Yaguarê me chama mana.
Pergunta sempre: _ Por que?
Seja qual for o assunto
E ri quando eu respondo:
_ Não faz pergunta difícil...
Tenho orgulho dele.
Porque é preciso coragem
Pra vencer a morte
Pra sobreviver na cidade
Pra fazer suas escolhas
Pra voltar para a aldeia
Pra continuar escrevendo sua história
Yaguarê me deu o nome que uso aqui
Ypohiketé é flor, uma flor amazônica
É nome de mulher.
É meu batismo indígena.
É o presente do meu amigo,
escrito faz muito tempo,
mas que só hoje eu entendi...
Puxa, mano, obrigada.

Yaguarê Yamã é indígena da etnia Saterê-Mawé, do Amazonas.
Formou-se geógrafo em São Paulo, casou-se, teve filhos e voltou para casa.
Hoje é professor, líder comunitário e escritor.

Tem cinco livros publicados: Purãtig, o remo sagrado, Sehay Ka'at Haria -O caçador de histórias, Urotópiag - A religião dos pajés e dos espíritos da selva, Murugawa - Contos, mitos e fábulas do povo e Sehaypóri - o livro sagrado do povo Saterê-Mawé. Com seu silêncio, ensinou muitas coisas que eu não sabia.

domingo, 8 de junho de 2008

Banzo

Só tendo sabença de quem foi menino, sendo gente
Pra lembrar que deu topada, limpou co'a mão

e despencou correr ladeira abaixo...

Só sendo quem provou laranja de fazer doce,

fingindo que achava bom o amargo,
pra se gabar

Quem comeu içá torrada

na brasa do fogão de lenha

(Batata-doce e pinhão, todo mundo come!)

Catou girino no remanso, com peneira

criando até virar sapinho e ganhar nome

Poronga e bucha na cerca, coisa de Jesuína

Laranja bahia, cascada sem rebentar

as cascas secando no varal, prá acender fogo

Sempre bão de ver, o fogo nas foia do quintar

de terra varrida, lisinha, lisinha - eh, fumacê!

Garrou correr com os cachorros:

Diana, Scôtt e Valente

Escondeu de mãe nos galhos da jaboticabeira

que o grito dela sacudia

e amadureciam meninas - ploft!

Só tendo sabença de quem viveu

Pegar escondido o pito do bisavô

ficar co'a mão cheirando ruim

e ter que ouvir:

_ Co's diacho!!!

Ver vó benzer criança de colo

com murmúrios e Salve Rainhas

Deitar debaixo do abacateiro, sombra boa

depois virar a roupa do avesso

pra esconder os verde

Só quem remexeu nas revistas do tio

e ficou encantado:

um mundo de tanta figura!

Correu atrás de galinha,

correu de medo dos gansos

Riu de Pedro Malasartes

Teve medo de defunto

Só quem viu, sabença de que,
sendo gente, pode alembrar pra contar
Quem estudou pra falar certo
e usar direito o diminutivo
É só lembrar do sotaque,
botar um arrasto nos erre
e cantar falando: miudim, pertim, mininim
porrrrrrrrrtão, porrrta, porrrteira,

Pronto! Cê tá lá, rapidim!


A foto foi feita na Pousada dos Anjos - MG.