segunda-feira, 12 de julho de 2010

Fóssil


De acordo
com os cálculos
(cálculos são pedras!)
há conchas
desde os primórdios.
Os tenros moluscos
que as habitam
também.

A casa então
é milenar.
Existe
desde que o mais mole dos seres
se escondeu do predador
e secretou (secretar é um verbo esquisito)
misto de areia e sucos gástricos
e expeliu (expelir é bom)
o misto de si e do meio
que viria a habitar.

Estas são as hipóteses científicas.
No meu ABC, fica assim:

O homem, com inveja, construiu
com barro, excremento e palha
também sua casa
Madeira veio depois
Metal e vidro mais adiante
O plástico, o papelão,
n'algumas moradas hoje.

Dona Doida diz que Deus gosta
de espiar a casa do homem
Seu olhar por cima
da cumeeira do mundo.
O que será que Lhe apraz?

Como o molusco na concha,
nossa imensa solidão?
Ou nossa capacidade
de povoar de mistérios,
de agregar criaturas,
de miniaturizar o universo,
criando para nós mesmos
o que houvera de agradá-Lo?

Sempre pensei no Deus
jogando eterno xadrez
com Aquel'outro.
As partidas se sucedem
ganhando, ora Este ou Aquele.
Então nosso mundo,
possa ser que seja o prêmio:
a casa de bonecas,
todinha mobiliada
e com a gente dentro.

Mas o bom que Eles acham
é jogar!

Dona Doida é a personagem do poema de Adélia Prado que ganhou vida na peça teatral com a atriz Fernanda Montenegro.
Gaston Bachelard escreveu um livro sobre A Poética do Espaço, assim como escreveu sobre a água e o ar...
Desde criança, tenho fascínio por conchas.




sexta-feira, 9 de julho de 2010

Bispo



O poeta é um fingidor...

Definitivamente.
Dilacerado, ainda sangrando, finge.
Risonho e franco, ensolarado, finge.
Embriagado de sua importância, finge...

Perdido no tiroteio, ainda assim,
com pompa e circunstância,
finge que está só de passagem,
nas mãos o caderno de anotações.

A linha que divide o real do imaginário,
o mundo paralelo, onde reina,
é tão tênue quanto a máscara
que insiste em portar.

O poeta não engana ninguém,
a não ser a si próprio,
com seu paletó invisível
que só alguns podem ver...

Com a flor na lapela inexistente,
espalha seu perfume por aí,
indiferente aos cáusticos
e aos sonolentos.

Seu delírio é tamanho,
que Vê.

Finge tão completamente,
que chega a pensar que é dor,
a dor que deveras, sente.

A citação é de Carlos Drummond de Andrade, para quem uma pedra não é só uma pedra.
O Rei está nu é um conto inspirador.
Arthur Bispo do Rosário criou sobre a dor, o desprezo e a ignorância, uma roupa pra ver Deus.





quinta-feira, 1 de julho de 2010

Raiz


Lá vai a garça voando,
batendo papo na areia,
Me leva contigo, garça,
Me tira de terra aleia, ai, ai...

De vez em quando a poesia
que faz morada na gente
Cisma de sair voando
pras bandas de seiláeu...
Então, a gente que vive
tão ocupado, com pressa
de viver maomenamente
Se apercebe que viver
é tamém catar poesia
este piolho danado
que se esparrama de banda
se os dedos querem garrar

Daí a gente desprende
do ofício mais ordinário
de arear panela, secar chão,
bater prego, comprar bugiganga
E dana a olhar pro céu (meu amor!)
que fica lindo na invernagem...

Espiar na ilha, a árvore
coalhada de garça branca
(e alguns biguás)
faz duvidar da importancia
da gente, tão pequeninha
diante de aguada tão bela
que tinge todas as coisas

Como os meninos no pasto
Correr, descalço na terra
do tododia esquecido
é de muita precisão
Faz da gente suburbano
e feliz de novo,
Amém


Olha pro céu, meu amor é um dos versos do Véi Lua, Gonzagão, que ficam lindos na voz da Ceumar, moça encantada.
Os versos do início foram recolhidos de cantigas populares por Villa Lobos, assim me contou um dia, Gisele Cruz.