domingo, 12 de dezembro de 2010

Recado



Em meio ao murundu de coisas
no universo colorido do brechó
um pacotinho plástico
cheio de papeizinhos
cartões postais e santinhos
(não de políticos, santos mesmo!)

Peguei, não resisti, comprei
Abri em casa, curiosa,
Dezenas de cartões postais,
sem escrita e sem selo
de vários locais, as fotos antigas...

Mas o tesouro, as figurinhas
de santo, adivinha quem?
Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito, os principais
repetidos, em várias ilustrações
anos de festas das Irmandades,
de novena e devoção sem fim
Santo e santa dos escravos,
padroeiros da gente "de cor"

Mais uns outros, variados:
Nossa Senhora da Conceição Aparecida,
a do Carmo e a de Fátima,
o Expedito nunca falta,
Menino Jesus, Sant'Antoninho,
rezas, pedidos, novenas,
pela chaga no ombro do Cristo...
em textos que voltam no tempo
até onde eu não era nascida

E junto com todos os santos
Acompanhando São Dito
e a Senhora do Rusarinho,
de braço dado co'eles dois
a maior riqueza,
a maior vergonha,
a dor da Escrava Anastácia...


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Verão


Solto as tranças
e a mãe vem lavar
o cabelo comprido
sem pressa

Sentadas ao sol
ela desembaraça
e cantarola
uma velha canção

Tudo está bem
a mão percorre os fios
rapidamente:
novas tranças

Calor do sol,
do corpo da mãe
das mãos
no gesto ancestral

Avó, bisavó,
as índias e as negras
herança
discreta vaidade

Uma vez ouvi, comovida
a poeta recitar
A voz falhou
no poema da mãe

Rapidamente secou a lágrima
e recusou num gesto as palmas
_Vim de Divinópolis, pra dar vexame em São Paulo!

Respirou fundo
e recomeçou
desta vez até o fim.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Modo de espera

"Estou pousado em mim
Igual que formiga
sem rumo."

Só mesmo o poeta
poderia definir assim
só mesmo o homem-terra
que vê nas águas refletido o céu
que enxerga nas minúcias
o que atropelamos

O inseto mais diligente, perdido
pode outra imagem ser tão precisa?
A angústia de ensimesmar-se
Estar em si, desencontrado do entorno
Estar além, desencontrado de si

Cada vez mais acredito
na observação como origem
das mais belas obras
A observação atenta e minuciosa,
o olhar poético, encantado, encantador,
sobre a natureza,
simples,
misteriosa,
absoluta

A natureza da qual, esquecemos,
fazemos parte
Como fazem parte do corpo
a cabeça
e o coração.

" A normalidade é assombrosa.
Sua puerícia é mesmo carne de poesia."

As citações são de Manoel de Barros e Adélia Prado, respectivamente, nas obras: Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo e Manuscritos de Felipa. Hoje estou formiga.


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Tempero

Carece não dividir
o corpo e a alma
Deixar fluir a canção
no ritmo mesmo do tempo
Criar e lamber a cria,
arrodear,
cercar de cuidado e depois
ver partir
Carece destrancar
o rosto e o caminho
Deixar o ir e vir
suavizar a pedra,
apurar o doce.
Carece amar sem receio,
doer sem remorso,
moer o grão pequenino
entumescido de sol
em tão fino pó
que uma pitada
baste.


segunda-feira, 12 de julho de 2010

Fóssil


De acordo
com os cálculos
(cálculos são pedras!)
há conchas
desde os primórdios.
Os tenros moluscos
que as habitam
também.

A casa então
é milenar.
Existe
desde que o mais mole dos seres
se escondeu do predador
e secretou (secretar é um verbo esquisito)
misto de areia e sucos gástricos
e expeliu (expelir é bom)
o misto de si e do meio
que viria a habitar.

Estas são as hipóteses científicas.
No meu ABC, fica assim:

O homem, com inveja, construiu
com barro, excremento e palha
também sua casa
Madeira veio depois
Metal e vidro mais adiante
O plástico, o papelão,
n'algumas moradas hoje.

Dona Doida diz que Deus gosta
de espiar a casa do homem
Seu olhar por cima
da cumeeira do mundo.
O que será que Lhe apraz?

Como o molusco na concha,
nossa imensa solidão?
Ou nossa capacidade
de povoar de mistérios,
de agregar criaturas,
de miniaturizar o universo,
criando para nós mesmos
o que houvera de agradá-Lo?

Sempre pensei no Deus
jogando eterno xadrez
com Aquel'outro.
As partidas se sucedem
ganhando, ora Este ou Aquele.
Então nosso mundo,
possa ser que seja o prêmio:
a casa de bonecas,
todinha mobiliada
e com a gente dentro.

Mas o bom que Eles acham
é jogar!

Dona Doida é a personagem do poema de Adélia Prado que ganhou vida na peça teatral com a atriz Fernanda Montenegro.
Gaston Bachelard escreveu um livro sobre A Poética do Espaço, assim como escreveu sobre a água e o ar...
Desde criança, tenho fascínio por conchas.




sexta-feira, 9 de julho de 2010

Bispo



O poeta é um fingidor...

Definitivamente.
Dilacerado, ainda sangrando, finge.
Risonho e franco, ensolarado, finge.
Embriagado de sua importância, finge...

Perdido no tiroteio, ainda assim,
com pompa e circunstância,
finge que está só de passagem,
nas mãos o caderno de anotações.

A linha que divide o real do imaginário,
o mundo paralelo, onde reina,
é tão tênue quanto a máscara
que insiste em portar.

O poeta não engana ninguém,
a não ser a si próprio,
com seu paletó invisível
que só alguns podem ver...

Com a flor na lapela inexistente,
espalha seu perfume por aí,
indiferente aos cáusticos
e aos sonolentos.

Seu delírio é tamanho,
que Vê.

Finge tão completamente,
que chega a pensar que é dor,
a dor que deveras, sente.

A citação é de Carlos Drummond de Andrade, para quem uma pedra não é só uma pedra.
O Rei está nu é um conto inspirador.
Arthur Bispo do Rosário criou sobre a dor, o desprezo e a ignorância, uma roupa pra ver Deus.





quinta-feira, 1 de julho de 2010

Raiz


Lá vai a garça voando,
batendo papo na areia,
Me leva contigo, garça,
Me tira de terra aleia, ai, ai...

De vez em quando a poesia
que faz morada na gente
Cisma de sair voando
pras bandas de seiláeu...
Então, a gente que vive
tão ocupado, com pressa
de viver maomenamente
Se apercebe que viver
é tamém catar poesia
este piolho danado
que se esparrama de banda
se os dedos querem garrar

Daí a gente desprende
do ofício mais ordinário
de arear panela, secar chão,
bater prego, comprar bugiganga
E dana a olhar pro céu (meu amor!)
que fica lindo na invernagem...

Espiar na ilha, a árvore
coalhada de garça branca
(e alguns biguás)
faz duvidar da importancia
da gente, tão pequeninha
diante de aguada tão bela
que tinge todas as coisas

Como os meninos no pasto
Correr, descalço na terra
do tododia esquecido
é de muita precisão
Faz da gente suburbano
e feliz de novo,
Amém


Olha pro céu, meu amor é um dos versos do Véi Lua, Gonzagão, que ficam lindos na voz da Ceumar, moça encantada.
Os versos do início foram recolhidos de cantigas populares por Villa Lobos, assim me contou um dia, Gisele Cruz.


quinta-feira, 24 de junho de 2010

Verdade


Uma vez meu amigo Yaguarê
a propósito de uma certa professora
que insistia em que ele tirasse a camisa
pra contar histórias para os alunos (?!)
disse assim:

_ Eu não sou o índio que a senhora quer. Eu sou o índio que EU SOU.
E foi-se embora.

Volta e meia digo também.
E recomendo.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Serenata


É normal que as coisas saiam do controle
É normal, tento me convencer, que as coisas saiam do controle
Senão o que explicaria
a peça no forno entortar
a agulha furar o dedo
o bolo desandar...

Todas as pequeninas coisas
que parecem ter vida própria
(artes do fogo, do ar...)
lembram a fantasia infantil:
_Quando a gente está dormindo, tudo conversa,
tudo se move e brinca e dá risada,
o fogão, os brinquedos, as xícaras e a prateleira.
Pessoinhas saem dos livros e passeiam pela casa,
que nem naquele filme do museu, sabe?

Dito assim, parecem artes noturnas (coisa de Saci)
sumirem agulhas, dedais,
mudarem-se os livros das estantes
e pra debaixo da cama ir parar
o anel que tu me destes.

Escapam do frágil controle que fingimos ter
as auroras, os vendavais,
as teias prateadas das aranhas
e a lua nova que teima em brilhar
trazendo a música que invade os dormitórios.

Como controlar
a mão do poeta que procura um verso
a voz de mulher, que é capaz de criar mundos no mundo,
o alarido dos amigos que se encontram?

Que bom que as coisas saem do controle,
ainda bem!

A expressão em itálico refere-se a canção "Livros", de Caetano Veloso.
O bordado mágico da foto foi feito pela Trudy, índia colombiana com nome alemão!

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Brilho


Quando criança, vi de relance,
em um passeio pela mata da Cantareira
as cores brilhantes da cobra coral.
O susto, o fascínio,
a dúvida (falsa ou verdadeira,
venenosa ou não?)
Tudo durou alguns segundos.
Lá também vimos os bugios
que gritavam de muito alto
nos assustando durante a passagem.
O pai nos proporcionou sempre
este contato com a natureza,
viajando, pescando ou apenas
nos levando a perambulações
por lugares que conhecia.
Nada muito planejado,
apenas o lanche pra matar a fome.
A curiosidade nos levou a conhecer
e buscar saber cada vez mais
sobre o vôo dos pássaros, sobre as conchas,
os fósseis trazidos para casa,
os sinais encontrados nas pedras.
Neste sentido, o pai foi cientista,
tanto quanto a mãe, professora
e juntos nos ensinaram como ler a natureza.
Os avós, estes já eram mestres nisso...
Hoje em dia, esta sabença
de encontrar as teias de aranha orvalhadas,
os cogumelos que nascem depois da chuva,
os tapetes de flores na primavera
de saber o nome dos pássaros e das plantas,
as venenosas e as que curam,
as que dão flores ou frutos bons de se comer,
toda a magia escondida num espelho d'água,
os peixinhos minúsculos, girinos, pitus,
tudo está cada vez mais raro
e menos valorizado.
No entanto, há filhos iniciados
e outros virão, por certo...
e ainda temos Manoel de Barros,
com seu coisário de nadezas que nos encanta
Há salvação...
As listras da cobra coral, suas cores,
seguem em meus olhos como um sinal,
uma conexão com a mata,
um portal.

Manoel de Barros é o poeta das coisas ínfimas, invisíveis, essenciais.
O poeta da natureza em seu estado puro.


domingo, 2 de maio de 2010

Aconchego


Um binóculo pra observar pássaros:
trocentos reais.
Um livro sobre as aves tropicais:
outros tantos.
Alimentar um beija flor na palma da mão...
Não tem preço.

O beija flor foi uma das formas que Ñanderu, o Pai Primeiro do povo Guarani, escolheu para visitar a Terra e sua criação. Honra e agradecimento ao Pai, pela graça de sua companhia.
A foto é da Regina, em visita ao litoral norte paulista.

domingo, 25 de abril de 2010

Pâo e poesia



Vaidade de vaidades, tudo é vaidade...

Me disseram que blog é vaidade

Deve ser...
Nestes tempos de pouco pão
e mais minguada poesia
a procura recorrente é por
interlocução
Inteligente, se possível...
Silenciosa, mas doce.
Volto aqui depois de tempos
contando sobre o quintal,
a casa, de novo...
Nossa casinha amarela
que nem bolo de fubá
está quase pronta.
Já tem recebido visitantes:
beija-flores, rosas,
gafanhotos verdes,
que os índios chamam tucuruvi
e a gata branca, manhosa
que requer atenção constante
e adora um cafuné.
Vela acesa na janela,
flor no vaso,
pão na mesa, quentinho.
O Espírito Santo de papel machê,
a Iemanjá cercada de frô,
mosaicos de caquinho
e duas cadeiras, ainda por terminar...
Família, âncora da gente.
Visita do pai, constante,
que vem vigiar a obra
trazendo suas ferramentas e
tapando todos os buraquinhos.
Visita da mãe, severa,
de olho em cada cantinho,
querendo organizar a vida
de gente tão desorganizada!
A confusão de pedreiro e pintor,
gente que de vez em quando some
e quando aparece, trabalha.
Os filhos, o amor,
encontrando seu espaço na confusão.
O amor fazendo seu espaço.
As formigas, joaninhas,
as folhas no quintal,
vida diária, lida diária, rotina,
que agora acho tão boa!
Não vejo a hora de ter aqui
amigos queridos
pra prosear sem pressa
tomar chá, comer bolo,
fazer fuxico e canção.
Assim que acabar eu conto,
se bem que, de verdade,
a reforma de dentro da gente
não termina nunca... né mes?

O título da postagem é o nome de uma canção de Moraes Moreira.
A citação inicial é atribuída ao Rei Salomão.
A foto é do Cauê.