sábado, 5 de dezembro de 2009

Brasileiro de Almeida



Foi Antonio Brasileiro
quem soprou esta toada
que cobri de redondilhas
pra cumprir minha jornada
e com a vista enevoada
pelo inferno e maravilhas...

Mestre Antonio escreveu sobre a casa
cantou também os urubus e outros pássaros
nos deu as canções mais lindas

de ouro e marfim

Amou os animais
e plantas
e crianças
e todas as mulheres do mundo

Amou sobretudo a musa
a música
o que a voz entoa
e o instrumento ecoa

Nos deixou de presente
tudo quanto é lindo
a sabiá, a roseira,
o rio, o Rio...

O pato preto, o camiranga,
em melodias tão lindas
que dá vontade de chorar...
ou Borzeguim, de dançar

Com Maria Luiza,
com Elis,
com Miucha
e seu coral de vozes límpidas

O piano inesquecível
O charuto, o chapéu,
A prosa solta, sem pressa,
Como quem desata nós

Se fizer bom tempo amanhã,
como diria o baiano,
Eu vou, Mestre Jobim.
Mas se, por exemplo, chover...


As frases em itálico são, respectivamente, de Chico Buarque, Gilberto Gil e Dorival Caymmi.
Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o maestro soberano, tinha um humor afiadíssimo. Certa vez plantou tinhorão na entrada da sua casa, pra provocar o crítico José Ramos Tinhorão, que o atacava constantemente. Diz a lenda que, ao voltar do bar, antes de entrar em casa, aguava as tais plantinhas...
A foto é da Regina, a mana quase alemã...


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Tempero da vida



Por que é que o doce
pra ser melhor
tem que ter uma pitada
do sal do mar?

por que o ácido
misturado ao doce

cria sabores além


e o açúcar moreno

tem sabor da terra
quando chove chuva fina?


Por que será

que o jasmim manga
cheira tanto...
(por que será que guardo um deles,
seco, sem odor?)


que o pau casca
de canela
dá sabor
e o gengibre cura,
tem alma?

se o mel
vem
da entranha
do inseto,
espesso


se a semente
da pimenta
é que faz o ardido


se a essencia
guarda o espírito das ervas

se eu nem sei
quando dói,
o doce que eu quero mais...
pão de ló da vó Kita,
queijo com goiabada,

cocada mole,
o strudel trabalhoso,

o sonho,

o sonho,
o sonho...


"o coração amolecido como figo na calda"


A frase entre aspas é do poema Chorinho Doce,de Adélia Prado, eterna inspiração. O título é de um filme franco-grego, lindo e imprescindível...

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Perneta



O Saci esteve conosco
brincando na tarde quente
circulou até de noite
no sobrado secular

Todos viramos meninos
de novo a nos assombrar
com as histórias de susto e morte
e algumas de gargalhar

Batendo os pés no terreiro,
pra todo mal espantar
catira, ciranda em roda
consagramos o lugar

Salve Dedé, a guerreira
que carregou o negrinho
pra dentro da nossa vida
Salve Bosco, o visionário
que abriu suas portas
pro quintal da nossa infância

Salve, amigos queridos
uma vez mais, o Saci
teimoso que é

desafiou as bruxas
enganou a Morte
resistiu!

A Festa do Saci existe há 4 anos, mas há 6, a querida amiga Débora Kikuti iniciou a cruzada para fazer do nosso neguinho uma unanimidade, em lugar das abóboras do capitalismo selvagem... Este ano foi especialmente importante, pois teve a participação de muitos outros, trazendo sua contribuição com diversas manifestações da cultura popular brasileira, no solar centenário da Casa dos Cordéis.
A foto é do fogão de lenha da dona Candinha, antes da reforma...

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

De morar




Ô, beija flor,
toma conta do jardim

Vai buscar Nossa Senhora
pra tomar conta de mim...

Sinhá Rainha,
Tua casa cheira
Cheira cravo e rosa
e flor de laranjeira

Ô, beija flor
toma conta do jardim
Vai buscar Nossa Senhora
pra tomar conta de mim...

Levei pro Rosário
um galho de manjericão
E ofereci pra santa
junto com o meu coração

A casa se renova
para novos habitantes
crescemos
já não cabemos nela

Estamos mais sábios
ainda inquietos
em busca de espaço
para a criação

a mesa, o pão
a tela, o bordado
o som, a cantiga
a flor, a união

começa agora
um novo tempo
novas sementes
a germinar

Benedito, Do Rosário,
Francisco, Antoninho,
Miguel e os anjos
sejam bem vindos...

Depois de longo tempo, volto aqui...
Às vezes a noite escura da alma é mais longa... mas o dia prevalece.
A canção inicial é tradicional de Minas Gerais, em louvor à Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que pode ser ouvida em linda versão com Déa Trancoso, no cd "Tum, tum, tum".
A foto é da Maria sem vergonha, abundante por aqui... Impatiens, para os botânicos, por causa das sementes que explodem ao toque.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Herança


Senhora do Rosário foi quem me trouxe aqui
Senhora do Rosário foi quem me trouxe aqui
A água do mar é boa
Eu vi, eu vi, eu vi...


Da mãe o nome e a madrinha
Do pai o humor e o ritmo
Da vó a narrativa e a magia
Do vô a força e a teimosia

Doutra vó a dureza
Do voinho a doçura
Das tias a alegria
Dos tios a tolerância

Perceber o que ficou...
da convivência com o outro
evitar cachorro brabo
saber o gosto da cana
sonhar com quem vai chegar
saber ouvir sem falar
escutar os passarinhos
cantar, cantar, cantar

Tudo são versos que escuto,
vêm dela,
pois minha mãe é minha voz

como será que isto era
este som
que hoje sim, gera sóis
dói em nós...



I´ve got
from my mother
the name and the godmother
from my father
the rythm and humour
from grandma, the magic and many narratives
from grandpa, the strenght and obstinacy

I´ve got
from the other grandma, the hardness
from the other grandpa, the sweetnes
from the aunts, the joy
from the uncles, the tolerance


To perceive what remained
from the living with each other
to avoid the mad dogs
to know from sugarcane, the flavour
to dream with the next visitor
to know how to talk without speak
listening to the birds
and to sing, sing, sing



A primeira estrofe em itálico é da canção popular mineira em louvor à padroeira dos escravos. A estrofe que fecha o texto é da canção Genipapo Absoluto, de Caetano Veloso.
Foto tirada na casa da dona Candinha.


domingo, 5 de julho de 2009

Francisco




O dia

em que estava

perdido

no sótão


Revi

brinquedos

louças

quinquilharias


Ouvi

as vozes

que vinham

das coisas


Previ

catástrofes:

terremotos

vendavais


O dia

em que estava

preso

no porão


Senti

o mofo

a umidade

opressão


Fui

Cérbero

Hades

Perséfone


Comi

as sementes

vermelhas

da romã


Convivi

com a sombra

a morte

invisível


Na casa

janelas abertas

deixei entrar

o Sol


Pleno

de vigor

claridade

bênçãos


Saí

para a rua

renovado

e nu

The day
I was
lost
at the
attic

I review
the toys
the dinner´s device
and little objects

I heard the voice
that comme
from things

I predict
disasters
earthquakes
windstorms


The day
I was
arrested
at the
cellar

I felt
The mold
the humidity
the oppression

I was
Cerbère
Hades
Perséfone

I ate
the red seeds
of pomegranate

I lived with
the shadow
the invisible
death

At the house
windows opened
I left the sun
come inside

Full
of force
clarity
blessings

I went out
to the street
renewed
and naked


sábado, 13 de junho de 2009

Te caitutera amocariu



Um acalanto

é um som
que vibra
num tom diferente

feito pra ninar
pra fazer dormir
soa grave,
mas leve

acalentar é semear
sonhos bons

às vezes tristes
as cantigas,
lembrança de um tempo
que mora além

um tempo bom
que desejamos reter
em qualquer língua
português, francês, tupi

na voz profunda
do mestre Dorival
pra Nana ninar

no timbre intrigante
da Salmaso
afinadíssima,
mãe da Terra

no tom dos pais
e mães amorosos
um vínculo inesquecível

nos leva a todos
pro colo
de Deus

O título refere-se à canção Amocariu, entoada lindamente por Nilson Chaves.
Acalanto é um clássico de Caymmi e foi composta pra adormecer a filha.
Salmaso canta Mariposa, no novo álbum de Francis Hime, além das participações deliciosas em Canções de Ninar, do grupo Palavra Cantada.
A foto foi tirada em noite de lua cheia na Pousada Natureza, em Massaguaçu-SP.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

memorando


Quando a tarde cai
Onde o meu pai
me fez e me criou
Ninguém vai saber
que dor me rói,
que foi
e aqui ficou...

Que foi feito de nós?
Os eleitos
escolhidos a dedo
pra revolver o mundo

Que é feito dos que
iam morrer aos 21
deixando o rastro de sua
meteórica passagem ?

A geração sanduíche
entre a ditadura e a AIDS
que amou colorido
apesar de todas as marcas?

Que enterrou seus mortos
de sexo, drogas e rock'n roll
na cova rasa dos indigentes
e cimentou a passagem
das hoje ilustres autoridades

O que foi feito, deverá?
As atrocidades, quem vê?
O choro doído, ninguém ouve?
Por detrás da escrivaninha, o paletó
Dentro do paletó, o silêncio.

O texto em itálico é um trecho de Santa Clara, padroeira da televisão, do álbum Circuladô de Fulô de Caetano Veloso.
Amizade colorida era uma expressão comum nos anos 80, significando relacionar-se sexualmente com amigos (as), independente de compromisso.
O que foi feito devera foi cantado por Elis no clássico Clube da Esquina. A imagem me lembra o mapa da América Latina.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

O retrato do Artista


"O retrato do artista quando moço
não é promissora, cândida pintura
É a figura do larápio rastaquera
Numa foto que não era para a capa"

A idéia me veio

enquanto picava a escarola
uma vontade louca
de me intitular Artista
Dizer: _ Nós, os artistas...
como nunca ousei

Que artista é Chico Buarque,
E Adélia Prado, Manuel de Barros,
todos os mestres, sabedores
do ritmo que as palavras guardam,
de seus segredos...

Artistas da fome, Kafkas,
artistas do pincel
e da caneta tinteiro,
do carvão e do rio

Vontade de dizer à edilidade
umas verdades
De ser Artista e pronto
sem medo
Cantando e inventando
um novo bailado

_ A velhinha enlouqueceu!
_ A escarola vai queimar!
Eu, dançando, cantando
e pintando e bordando,
como querem Baco e Deus


O Retrato do Artista quando Coisa é o livro de Manuel de Barros, que abriu o jorro...
A foto da capa é a música de Chico Buarque que abre o texto e não me sai da cabeça... encontrada no álbum Paratodos.
O Artista da Fome é um livro de Kafka, que li faz muito tempo...

O Ale Artista fez uns desenhos duca com caneta tinteiro...
Escarola refogada com azeite, alho e tomate é bão demais, sô!

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Verde


O sinal
luminoso
já não dá passagem

O silêncio impera
onde antes
a música se ouvia

O tímpano arde
com os sons urbanos

Repetidos,
repetidos

Já não se sabe
se ouviu ou não

Um grito
um sussurro,
um piado

Quer saber?
Só perguntando...

o máximo que se ganha
é o silêncio
ou um não.



A foto é do Cauê.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Exercício

O perdão bateu à porta
Abriu as comportas
cessou as intrigas

O perdão pediu passagem
a quem não pede desculpas
fez chorar, fez sentido,
fez refletir, o perdão

Derrubou o muro alto
que separava dois mundos
que isolava a palavra
e perpetuava o não

Desculpar é tarefa
para uma vida inteira
martelar o ferro em brasa
até domar a matéria

É exercício sem trégua
como o é pedir perdão
os dois lados envolvidos
sempre com suas razões

Nem vale fingir,
ignorar a dor funda
o perdão pede a verdade
sem a qual nada desperta

quem não perdoa, mata
o que em potencial
poderia ser, não é
mas tem chance, se puder

o perdão pediu licença
e desmanchou em água e sal
duas almas que se viram
sem parede, cerca ou não

sábado, 4 de abril de 2009

Xeque

The answer, my friend
is blowing in the wind
The answer is blowing in the wind

Respostas não são importantes
As perguntas são
São elas que destampam
silencio reprimido
mágoa acumulada
angústia recorrente

Perguntas curam
se verdadeiras
na hora certa, incisivas

Se a inspiração vem
do ar que respiramos
se a luz irradia
de um ponto entre os olhos
se a dor que machuca,
do centro do umbigo
e o amor que transborda,
do sangue que corre

as perguntas certas
hão de poder juntar
fora e dentro
conteúdo e continente

fazer da gente, galáxia
tornar-nos ao menos um segundo
unos
pra prosseguir, perguntando

O texto em itálico é da velha canção de Bob Dylan. A foto é do Cauê.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Visão


caracara
carcará
cara
cará
muitos
de uma vez

muitos
em sequencia
carcarás
na cidade

em meio
ao caos
seu vôo

minutos
antes
da chuva

no escuro
que se
anunciava

seu vôo
certeiro,
brincavam

vejo gato
cachorro
urubu
e pardal

mas o gavião
me vê
me encontra
antes
que eu a ele

assobia
chama
eu ouço
entendo

me protege
da chuva
do escuro
me guia

caracara
carcará
cara
cará

clã dos pássaros
me lanço
grito
e vôo

terça-feira, 3 de março de 2009

Sinhá Olímpia


Nhá Olímpia era fidalga
na Vila Rica de outrora
Desencantou-se aos quarenta
Virou figura folclórica

Andarilha das sete saias
sabia muitas histórias
Sua foto descorada
em Ouro Preto pairava

Sua história foi cunhada
Emaranhada entre tantas
mulheres fortes das Minas
Gerais, de ouro e prata

No caldeirão do vale
Onde a névoa faz pousada
De manhã cedo e à tardinha
Nhá Olímpia reinava

De chapéu de abas largas
com fitas, plumas, barbante
Com sua cestinha nos braços
e um cajado, imponente

Irritava os poderosos
De seus segredos ciente
Inventava outros tantos
e os espalhava, contente

Foi mandada a Barbacena
Pro hospício foi mandada
Tomar choques e remédios
Suplício pra ser calada

Voltou doída e mendiga
mas não perdeu sua aura
de fidalga de outras eras
princesa trancafiada

Aos estudantes, turistas
e passantes. reclamava
alimento e roupa quente
que com pobres compartilhava

Em troca suas histórias
correram mundo e fronteira
a figura colorida
a fantasia certeira

Até na escola de samba
Nhá Olímpia virou moda
Quando morreu, fez-se mito
As sete saias de roda

N.Sra. do Rosário
Vela por sua figura
que ainda ronda Ouro Preto
cajado na pedra dura

Aos dezoito anos, vi a foto de D. Olímpia numa loja em Ouro Preto. Aos vinte, descobri quem fora aquela mulher. Hoje volto a ela, inspiração para a loucura e o fogo criativo. Para saber mais, leia Sinais de Vida no Planeta Minas, de Fernando Gabeira. A foto é de Ruy Bittencourt e foi tirada em 17 de junho de 1965, disponibilizada no blog de Emanuel Valle Bittencourt em http://br.olhares.com/dona_olimpia_autoria_ruy_bittencourt_foto61129.html

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Yaguarê Yamã


"Vamos chamar o vento,
vamos chamar o vento..."


As flautas repousam
herdeiras sagradas
na Casa dos Homens

Um sopro de vida
coluna soante
A flauta acorda
vibra, desdobra o ar

Lá fora
taboca, taquara
bambuzal, ninho, floresta
sacodem no vendaval

Por um momento infinito
o ruído é assustador
enquanto a flauta passeia
entre monótonos tons

Cessa a flauta,
cessa o vento,
tudo cala de uma vez

Não é festa, não é nada
É só o curumim
bulindo, brincando
de Tupana na Casa dos Homens

A frase entre aspas é da canção de Dorival Caymmi, que tem o mesmo nome.
Tupana e Tupã são a mesma divindade.

Layed down are the flutes,
sacred heritage,
at the Man's House

Suddenly, a life's blowing

at the sounding column
wake up a flute
that vibes the air around

Out there,
the bamboo trees
and all the forest leaves
dance along the wind

At this infinite moment
the noise is terrifying
though the flute keeps sounding
its repetitive sound

The flute stops
and so the wind
everything turns quiet

It is no party, it's nothing at all
but only the curumim
playing, touching, dreaming
alone at the Man's House.


quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Insetos

Há pessoas que preferem fotografar portas fechadas
Trancas, cadeados,
Já fui uma delas
Me encantam as construções antigas
ferrolhos, placas, dobradiças

Hoje as janelas abertas me chamam a atenção
eu prefiro deixar entrar
todos os insetos...

O texto em itálico refere-se a uma canção de Chico - Janelas Abertas número 2.
A janela em questão é da Pousada Natureza, em Massaguaçu-SP, delícia de construção ao pé da cachoeira... obrigada, Trudy, pela hospedagem e carinho.

There are people who prefer to photograph closed doors
locks, crossbars, serrures
I was one of them
I love the antique buildings
eyebolts, plates, hinges

Today, the open windows atracts my attention
I prefer to let
all the insects come in...